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As memórias de um militante incansável
Trabalho de Ana Carolina Peçanha Vieira 2022/UFRRJ

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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

 

DISCIPLINA: ANTROPOLOGIA SOCIAL

DOCENTE: MARTA REGINA CIOCCARI

 

Pesquisa de campo

O ano de 2018 marca o ingresso de minha consciência política. Até então, mínima, sem grandes referências. Sentia-me estagnada, mas explorando um novo espaço. Conforme os noticiários abordavam os movimentos políticos do momento, comecei a perceber que o meu interesse estava em relacioná-los com o passado, o que justifica também a minha escolha para cursar História na graduação.

Interroguei-me acerca do que havia aprendido da área enquanto estudante do ensino básico e notei a necessidade de pesquisar sobre o golpe civil militar de 1964, cujo tema sempre fora mal debatido em meu círculo pessoal; provavelmente por questões ideológicas conservadoras, mas também pela cristalização de termos e ideias não condizentes com a realidade da época. Para tanto, com o passar do tempo, percebi que o movimento deveria ser mais um: aproximar-me daqueles que a viveram de fato, nos seus mais variados âmbitos

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O objetivo sempre foi contribuir para uma escrita verídica dos episódios, os quais ainda hoje sofrem por falsas conotações e distorções reacionárias.

Posiciono o meu tema de pesquisa acerca da vida revolucionária de Leopoldo Paulino, um notável combatente de Ribeirão Preto que atuou de forma brava às imposições ditatoriais. O mesmo cede a mim, desde o início do ano de 2022, seus livros e materiais que descrevem sua participação na luta em geral, assim como suas relações interpessoais e a escrita de uma história sem omissões, o que contribui de maneira incontestável ao processo desta pesquisa.

(Leopoldo Paulino, 2002. Foto de Daniel de Andrade Simões)

Meus movimentos iniciais durante nossa entrevista, realizada de forma online (por motivos de distância) no dia 15 de julho de 2022, foram em vista de seu percurso ainda como estudante em Ribeirão Preto (SP), a entrada para a militância ativa e todo o envoltório que norteou o contexto social do golpe civil militar de 1964. Além do mais, propus ao entrevistado que, como objeto de referência para o nosso segundo encontro, pensássemos criticamente sobre a atual conjuntura política brasileira, tendo em vista suas vastas experiências, dotadas de historicidade e lucidez nas articulações vividas.

Começo perguntando se houve alguma razão específica que o fizera interessado na política nacional. Paulino descreve a importância de seus pais Moacyr Alves Paulino e Maria Aparecida Teixeira Paulino nesse processo de tomada de consciência. A participação de ambos no Partido Comunista e a frequência nas reuniões da União Geral dos Trabalhadores (UGT) refletia no clima em sua casa. Em seu livro Tempo de Resistência (2019) é explicitada a gênese histórica da movimentação ideológica de sua família:

Meu avô paterno, Anacleto Guilherme Paulino, também ferroviário e maquinista da empresa, conduzira tropas revolucionárias em 1924, comandadas pelo então tenente João Cabanas, e eu, criança, me deliciava quando o velho se dispunha a relatar algumas passagens daquela época, as quais certamente influenciaram meu pai em sua opção política.

(PAULINO, 2019, p. 30).

Conta que, naquele fatídico dia 1 de abril de 1964, com apenas 13 anos de idade, caíra em uma febre de 40° devido a repercussão do episódio que assinava a criminosa destituição da constituição brasileira; um sistema imbuído de perseguições, torturas e retentor das liberdades individuais. Durante a narração, observo aflição em seu olhar.

A partir de 1965, Leopoldo Paulino começa a desenvolver mais atividade em seu entorno, o que lhe conferiu, no ano seguinte, a entrada efetiva no movimento estudantil e no Partido Comunista. Na escola, participava das primeiras passeatas. Ele me relata, com muita indignação, que aos 17 anos foi expulso do colegial, pois planejou uma pichação contra o diretor da escola: "um completo conservador; muito arbitrário", que usava uma régua para controlar até o tamanho do cabelo dos rapazes na época.

Interrogo-lhe a respeito do marcante ano de 1968 para a discussão do tema. Leopoldo narra um período de grande efervescência em todos os âmbitos de sua vida. Revela uma rotina agitada: fazia duas faculdades (História e Direito) e solidificava, cada vez mais, seu envolvimento com o ME (Movimento Estudantil) que atingia, naquele momento, o ápice da revolta contra a agência opressora da polícia militar que, em um ato covarde, assassinou o estudante secundarista Édson Luís, provocando largos protestos em todo o país.

O progresso da ação da extrema direita também estava em voga, principalmente com a atuação de grupos terroristas, como o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), portanto simbolizava o início de embates mais diretos, o que requeria planejamentos racionais e urgentes, e é nessa configuração que Leopoldo Paulino me conta sobre a sua primeira prisão, ocorrida no 30° Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em 12 de outubro de 1968:

Gritos por toda parte anunciavam a chegada das tropas, "Polícia!", "Repressão!", enquanto dezenas de companheiros se levantavam às pressas e diversos tiros eram disparados para o alto por soldados da tropa invasora, muito embora algumas balas tenham atingido parte do acampamento e estilhaçado um antigo lampião que iluminava o local.

(PAULINO, 2019, p. 120).

A partir de tal contexto Leopoldo insere-se cada vez mais nos atos revolucionários, participando como militante na Ação Libertadora (ALN)  sob direção de Marighella. A condução da entrevista é agora pautada nos atentados provenientes da luta armada de forma mais detalhada. O entrevistado relata as dificuldades para com as frequentes prisões, tendo em vista que sua cidade natal, Ribeirão Preto, detinha a maior taxa de prisioneiros políticos do Brasil naquele momento.

As descrições me transmitem absolutas experiências sensoriais que pela qualidade do teor realístico, garantem uma visualização não romantizada dos fatos e a compreensão fiel das dinâmicas de combate, tal como os riscos conseqüentes. São narrados os casos de expropriação mal sucedidos, a preparação de instrumentos como coquetel molotov, o material de pichação criado através de uma mistura de cal e tinta, além de outras preparações para os confrontos diretos.

O entrevistado relata que, após “sair do cerco”, ou seja, conseguir adaptar sua vida a uma configuração clandestina, através do auxílio de seu pai aos 19 anos, conseguira um passaporte falso no Rio de Janeiro para se exilar, respectivamente, no Chile, na França, na Dinamarca e, mais tarde, retornar ao destino inicial. Em solo chileno, se depara com outro entrave conservador: a ditadura de Pinochet iniciada no dia 11 de setembro de 1973. Até o momento, consigo observar faíscas de adrenalina nas rememorações de Paulino; estas, que se ampliam na descrição da invasão das Forças Armadas a sua casa no dia 17 do mesmo mês. Fora um momento de muita atenção e terror psicológico, tendo em vista que seu filho Tico estava passando mal naquela ocasião. Os policiais tinham como objetivo descobrir o paradeiro de Denise Crispim, outra combatente procurada, filha de Encarnación, também presente no enquadro. Neste momento delicado, são expostas as torturas que viveram na infeliz passagem:

Embora violentos, percebi que os policiais eram inexperientes e passei a dominar a situação, dizendo-lhes que não conhecia nenhuma Denise e que era professor de música. Passaram a espancar a mim e a Encarnación, dizendo que em casa não havia livros de música. (PAULINO, 2019, p. 333)

Agarraram-nos com a violência à qual estão habituados, arrastaram-nos para fora do apartamento e fizeram com que descêssemos as escadas a socos e pontapés até o pátio do residencial, onde nos enfiaram na viatura, sob os olhares solidários de diversos vizinhos que viam a cena, sem que nada pudessem fazer. (PAULINO, 2019, p. 335)

Após três dias com muita dificuldade, consegue, com a pressão da ONU, o apoio da Embaixada do Panamá, porém provisoriamente. A solução mais viável para as instabilidades foi o retorno de Beti, sua esposa, para o Brasil, com o filho do casal. Leopoldo confessa que ficara quase três anos sem voltar para o seu país de origem pela falta de garantia, mas também pelo medo que lhe aflorava, pois os reacionários estavam adquirindo os novos métodos investigativos, além de mais eficiência nas apreensões. É decerto surpreendente observar a trajetória de Leopoldo e perceber tantas prisões nos decorridos anos de atuação. Ele pontua que estas eram rápidas, mas cautelosamente programadas.

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(Beti, Tico e Leopoldo em Copenhague)
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(Foto de Leopoldo Paulino nos arquivos do DOPS)
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(Arquivo pessoal)

De repente...

Olha eu de novo

Perturbando a paz,

Exigindo o troço.

(Pesadelo – Paulo Cesar Pinheiro/Maurício Tapajós)

Na década de 80, Paulino persiste na luta compondo o MR8, uma organização carioca de combate sem luta armada. Em 1982, é eleito vereador pelo PMDB e, posteriormente, desempenha funções como presidente local do PSB. Ao todo são seis mandatos, os quais foram marcados por posicionamentos bravos e articulações contrárias à omissão, que orientavam-se segundo a defesa do direito democrático da memória.

Após um mês dos relatos anteriores, chegamos a nossa segunda entrevista, conclusiva e de enfoque atual. Começo o interrogando a respeito de sua visão para com a conjuntura que enfrentamos. Para tanto, exponho a minha preocupação com os acontecimentos recentes e seus desdobramentos.

Leopoldo Paulino revela repúdio ao colocar que realmente precisamos nos preocupar, pois o governo é ocupado por um “fascista eleito pelo povo”; neste momento, ele faz um paralelo com a esfera dos militares da década de 60, que não foram eleitos diretamente. Frisando a proximidade com as eleições de 2022, o entrevistado busca contribuir para um esclarecimento popular no sentido de derrotar o sistema vigente, alertando ao fato de que 30% do eleitorado mantém o voto em Jair Messias Bolsonaro; observa a emergência de uma juventude consciente e garante seu apoio a mesma, sempre com o intuito de condenar todas e quaisquer expressões do fascismo os âmbitos político e social.

A luta de Leopoldo Paulino jamais poderia se resumir. Mediante a tal impossibilidade, expresso, primeiramente, meus votos de gratidão ao mesmo para tanta confiança no processo de elaboração desta presente pesquisa; o que resta vivo em mim é o sentimento de buscar as devidas respostas às perguntas que nunca me foram respondidas com veracidade e coerência, sempre por visões homogeneamente conservadoras e perigosas. Em segundo, como tentativa de referência (e reverência) à sua figura, deixo o registro de trechos que muito me aludem às suas ações; ações de um lutador do bem comum:

Quem tem consciência para ter coragem

Quem tem a força de saber que existe

E no centro da própria engrenagem

Inventa contra a mola que resiste.

                                             -

Quem não vacila mesmo derrotado

Quem já perdido nunca desespera

E envolto em tempestade, decepado

Entre os dentes segura a primavera.

(Primavera nos dentes, Secos & Molhados)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

PAULINO, Leopoldo. Tempo de Resistência.

11ª edição. São Paulo: Gráfica Villimpress, 2019

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