Início do meu exílio: 05 de Fevereiro de 1970
- leopoldotempoderes
- 5 de fev.
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A precariedade de meus esconderijos, aliada às quedas sequenciais na ALN e em outras organizações de esquerda no Brasil, indicava que eu estava correndo grave risco de ser um preso ou um morto a mais, enquanto, no exterior, poderia juntar-me aos milhares de exilados que lá se encontravam e preparar-me para retomar a luta na hora certa.
De minha parte, estava seguro de que poderia conseguir fazer um treinamento em Cuba, país que continuava, como sempre, a apoiar-nos com firmeza, e voltar ao Brasil de forma organizada, juntamente com grupos de outros companheiros, para retomar a luta guerrilheira em condições mais favoráveis.
Por outro lado, as correntes políticas em luta no seio da ditadura militar tinham definido uma hegemonia total da linha dura dentro do regime e a Junta Militar, a 30 de setembro de 69, empossou como ditador o general Emílio Garrastazu Médici, partidário de maior ferocidade na repressão à esquerda no Brasil.
Na verdade, Médici foi o mais sanguinário dos ditadores militares brasileiros, em cujo governo foi assassinado o maior número de presos políticos, governando a ferro e fogo, calando a imprensa e, com isso, encobrindo a cruel repressão e a corrupção avassaladora que aniquilou as finanças do país.
Para organizar minha saída, Moacyr contou com a preciosa ajuda de seu amigo e colega de faculdade José Aparecido de Oliveira, cassado pela ditadura, que propiciou os contatos para a compra de um passaporte falso.
Assim, permaneci por alguns dias em casa, dessa vez sem olhar a rua, trancando-me no quarto a cada vez que alguma pessoa de fora chegava, enquanto meu pai viajava ao Rio de Janeiro para agilizar a compra do documento para que eu deixasse o país.
Durante aqueles dias, aproveitei para ler um pouco e descansar aguardando a volta de meu pai, recebendo de minha mãe e meu irmão notícias de Ribeirão Preto, que nenhuma novidade traziam, a não ser que os companheiros permaneciam presos e suas famílias desesperadas.
Um dia, tocou a campainha e minha mãe abre com cuidado a porta.
Do lado de fora do portão da rua, estava um delegado de polícia, de nome Palma Rocha, pedindo para entrar, dizendo que tinha uma intimação para mim. Diante da resposta de minha mãe de que não sabia do meu paradeiro, disse o delegado que a entrega da intimação era apenas uma formalidade exigida pelo inquérito policial e que ela mesma poderia passar recibo naquele documento.
De posse de um revólver 32 de propriedade de meu pai, postei-me atrás da porta, enquanto minha mãe mandou que ele entrasse no alpendre e colocou-se na frente da porta semiaberta, enquanto eu esperava que o delegado tivesse dito a verdade e não pretendesse forçar sua entrada na casa.
Caso contrário, eu seria obrigado a atirar nele, o que eu não desejava, sobretudo em se considerando que Palma Rocha jamais se envolvera com a repressão policial e certamente cumpria apenas uma formalidade burocrática.
Quando o portão se fechou com as despedidas do delegado, suspiramos aliviados e foi admirável a coragem de minha mãe diante de uma situação tão delicada.
PREPARANDO A SAÍDA
Ao chegar de viagem, meu pai já acionara seus contatos e era preciso que, dentro de poucos dias, eu fosse para o Rio de Janeiro, já que, por seu amigo José Aparecido de Oliveira, deputado cassado pela ditadura, conhecera um despachante que, por meio de subornos distribuídos à polícia carioca, conseguiria o passaporte para mim.
O amigo de meu pai, Dr. Pedro Bruno Neto, e sua mulher Irene viriam no dia seguinte para Ribeirão Preto. O casal me tiraria da cidade e me levaria para sua casa na Praia Grande, onde eu aguardaria o sinal verde para ir ao Rio.
Chovia muito quando deixei Ribeirão pela segunda vez, agora em companhia do Dr. Bruno e de sua mulher, Irene, que mostraram toda a disposição do mundo em auxiliar-me.
Passamos por Santa Rita para buscar a Beti e, já madrugada, chegamos a Santo André, onde dormimos na casa do Dr. Bruno.
No dia seguinte, fomos em companhia de nossos amigos em direção à casa de praia e eles, uma vez mais, demonstraram sua solidariedade.
Na praia, seria praticamente impossível sermos procurados, já que havia poucos vizinhos e, onde fazíamos compras, procurávamos passar por recém-casados, para não despertar suspeitas. Para comprar jornal, andávamos pela praia cerca de cinco quilômetros, evitando ir para a pista, onde a possibilidade de encontrar conhecidos era maior.
Um dia, ao chegar a uma banca de jornal na Cidade Ocean, notamos grande número de curiosos olhando as manchetes e caminhamos em direção aos jornais para ler as notícias que causavam tal curiosidade.
Chegando mais próximo, pude observar que o noticiário versava sobre o “Terror em Ribeirão Preto”, com fotos de várias pessoas que, pela distância em que me encontrava, eu ainda não podia identificar.
De imediato, pensei em voltar, pois uma das fotos poderia ser a minha, mas percebi que qualquer manobra brusca de retorno poderia provocar suspeitas.
Assim, aproximamo-nos e pudemos constatar que as fotos pertenciam aos companheiros da FALN. Destacava-se a de Vanderley Caixe, que a repressão não teve nenhum prurido em exibir com visíveis marcas de tortura, que o tornavam quase irreconhecível.
Alguns dias depois, o casal amigo foi buscar-nos, pois meu pai sinalizara que eu deveria ir para o Rio ultimar os detalhes para a obtenção do passaporte. Assim, rumamos para São Paulo e ficamos na casa de uma tia da Beti, D. Inês, onde aguardamos por meu pai que chegaria no dia seguinte.
Durante a tarde em que lá passamos, D. Inês, que estava muito preocupada com nosso futuro, levou-nos a uma vizinha que jogava búzios. Essa senhora, com a roupa utilizada pelas mães de santo, fez uma previsão sobre nosso futuro, dizendo que eu conseguiria mais uma vez enganar a polícia e sair do país sem maiores problemas.
No dia seguinte, meus pais chegaram e, à noite, com Beti nos acompanhando, embarcamos de trem para o Rio de Janeiro, utilizando esse meio de transporte a conselho de meu pai que, com razão, acreditava não serem os trens muito policiados.
No Rio, fomos para um pequeno hotel e registrei-me com meu próprio nome, já que na época as comunicações entre as polícias estaduais eram muito restritas e seguramente eu não era procurado pela polícia do Rio.
Durante o dia, andando pelo centro, observamos quando alguns garis assustados comentavam sobre centenas de panfletos no chão denunciando a prisão e o martírio de Madre Maurina. Abaixei-me, colhi um folheto e retiramo-nos rapidamente do local, já que seguramente agentes da repressão chegariam por lá.
À noite, jantamos na casa de José Aparecido com mais dois amigos seus: o deputado cassado José Gomes Talarico e Raul Ryff, também cassado pela ditadura. Lá, nós lhes narramos as agruras da repressão em Ribeirão Preto.
Contamos-lhes sobre a ferocidade dos policiais da OBAN que, quando tentaram prender mais uma vez José Marieto e sua filha Nanci, depois de havê-los libertado, não encontrando a família, fuzilaram os cachorros da casa, demonstrando aos vizinhos as atrocidades e covardias que eram capazes de cometer.
Esse relato, passado por Talarico ao jornalista Hélio Fernandes, foi na época editorial do jornal oposicionista Tribuna de Imprensa, sob o título “Cachorros Subversivos”.
No dia seguinte, meu pai e eu fomos ao despachante a quem ele contou a versão de que estava se desquitando e pretendia levar-me para o exterior, escondendo-me da mãe.
Eu, com a barba bem feita e o cabelo curto, embora com 19 anos, passava facilmente por 17, me apresentei com a certidão de nascimento de meu irmão.
A documentação estava quase pronta, quando o despachante me disse que eu teria que tomar vacina em um posto que funcionava nas dependências policiais, para obter o documento.
Respondi-lhe que tinha medo de injeção, o que motivou um sorriso irônico do homem, em desprezo à atitude daquele filhinho de papai, mas, em troca de alguns cruzeiros a mais, apareceu com o atestado de vacina e evitou que eu comparecesse à repartição policial e corresse algum risco.
O passaporte demoraria uns dias para ficar pronto e assim tivemos que regressar a São Paulo para voltar ao Rio uns dias depois. Não tendo onde permanecer na capital, decidimos ir até Santos, passando eu e meu pai a noite de Natal em uma pensão no Gonzaga, tendo meu pai às constantes indagações a respeito de nossa permanência no local, sobretudo em uma data como aquela, respondido com a velha história da “separação.”
Em Janeiro, voltamos ao Rio e finalmente o passaporte nos foi entregue.
Do Rio, voltamos de trem a São Paulo e de lá a São Carlos pelo mesmo meio de transporte.
Meu pai tinha apenas um carro antigo, que não teria forças suficientes para percorrer os mil quilômetros que nos separavam de Foz do Iguaçu, local escolhido para sairmos do país. Esta razão nos fez procurar meu avô Teixeirinha, que se dispôs a levar-me em seu Volkswagen.
Havíamos decidido que eu iria para o Chile, uma das poucas democracias que restavam na América Latina, país já abrigava centenas de exilados brasileiros.
A cidade de Foz seria o melhor lugar para se atravessar a fronteira, devido ao imenso movimento de pessoas que por lá passavam todos os dias, levando-se em conta que eu portava documento falso e não era estrela de primeira grandeza da guerrilha brasileira.
Assim, sairia do país sem maiores problemas.
Despedi-me da Beti, combinando reencontrar-nos no Chile tão logo fosse possível, ficando meus pais encarregados de lhe passarem meu futuro endereço. Ela voltou para Santa Rita e eu me preparei para viajar no dia seguinte.
No final de janeiro de 1970, juntamente com meu pai, minha mãe e o velho Teixeirinha à direção do carro, deixamos São Carlos, rumo à Foz, e fizemos escala em Ourinhos, na casa de uma irmã de meu avô, a quem dissemos estar viajando a passeio.
Chegamos à Foz à tarde, dois dias após nossa saída e nos instalamos em um hotel, já preocupados porque o dinheiro era pouco e tínhamos que evitar, ao máximo, gastos para podermos chegar a nosso destino.
No hotel, travamos amizade com várias pessoas, pois fizemo-nos passar por simples turistas. Um guia de excursões se ofereceu para me levar à noite em um cassino no Paraguai e, diante de minha resposta de que era menor de idade, disse-me ele que isso não seria problema, pois não havia nenhum controle na fronteira, à noite.
Chegamos a pensar em acompanhar o guia e, quando estivesse do lado paraguaio, não regressar à excursão e seguir direto ao Chile, mas percebemos que não valia a pena correr esse risco, pois tudo indicava que seria fácil deixar o país.
No dia seguinte, nós quatro cruzamos a fronteira no fusca dirigido por Teixeirinha, claro que passando por momentos de tensão, quando o funcionário da aduana pegou nossos passaportes para vista-los.
Logo em seguida, devolveu-nos os documentos, com os respectivos cartões de turistas, o meu já de acordo com o nome que constava no passaporte.
Depois de tantas manobras, deixava o Brasil, em 05 de Fevereiro de 1970, com o nome de Jorge Newton Teixeira Paulino.
Leopoldo Paulino
Trecho do meu Livro "Tempo de Resistência"
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