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PRISÃO NO CHILE DE PINOCHET

Enquanto esperávamos pelo amigo, observei pela janela do apartamento que dois carros grandes entravam no residencial, ambos com várias pessoas dentro e, à frente, um homem a pé portando uma submetralhadora.


Os automóveis não continham nenhuma inscrição que os identificassem e as placas eram aparentemente comuns e quase certamente “frias”. Os homens não tinham farda, o que nos fez concluir que pertenciam à polícia civil


Sai à porta e o vizinho da frente, ao perceber que as visitas eram para nós, propôs-me, apesar de simpatizante do golpe, que entrássemos todos em seu apartamento para nos escondermos.


Pensei rápido e concluí que não deveríamos fazê-lo.


Tico piorava a cada minuto e precisava de atendimento médico urgente. Era quase certo que os policiais, não nos encontrando, ficassem no apartamento por várias horas, o que faria com que o menino passasse a correr risco de vida.


Decidimos, assim, esperar em casa e enfrentar os intrusos, que já subiam a escada do prédio.

Aguardei que tocassem a campainha e abri.


De imediato, os policiais invadiram a casa, apontaram-nos as armas e revistaram todo o apartamento, destruindo boa parte do que havia nele, enquanto perguntavam por Denise Crispim.


A princípio, pensaram que Beti fosse a Denise, somente se convencendo do contrário depois que ela lhes mostrou seu passaporte e os demais documentos que possuía.


Com o Tico no colo, eu procurava demonstrar calma, e, por isso, não percebi que ele perdera os sentidos, em virtude da falta de ar que a enfermidade lhe causava.


Ao notar que o menino passava mal, Beti tomou-o em seus braços e pediu ao chefe dos policiais que o levassem ao médico, enquanto ele respondia que somente o faria após lhes dizermos onde estava Denise.


Beti demonstrou muita firmeza, disse que não conhecia Denise e renovou o pedido para que levassem Tico ao médico, agora já um pouco em desespero.


Olhei para a submetralhadora que o policial portava e notei que estava travada.


Pensei rápido e observei que, no pequeno espaço da sala do apartamento, estávamos em sete pessoas, pois lá se encontravam Beti, Encarnación e mais quatro policiais, além do Tico. Fiquei na dúvida se o tira estava blefando ou se pensava mesmo em deixar o menino morrer sem atendimento.


Com muita firmeza, exigi que levassem Tico ao hospital, já resolvido, caso se negassem, a tentar arrancar-lhe a submetralhadora das mãos, certo de que, provavelmente morreriam todas as pessoas dentro da sala.


Assim, disse ao policial, erguendo a voz: “É melhor vocês levarem o menino ao médico”, sem tirar os olhos de sua arma.


Tenho certeza de que o tira percebeu minhas intenções e até hoje não sei se, por medo ou compaixão, ordenou que dois de seus comandados, que estavam do lado de fora do apartamento, levassem Beti e Tico para que ele fosse medicado, utilizando um dos veículos da operação.


O estado do menino era realmente grave.


Quando os policias desceram com Tico e Beti, dezenas de vizinhos se aglomeravam ansiosos na área comum dos prédios. Soube depois, por alguns deles, que entraram em pânico quando viram o menino desmaiado no colo da mãe com o rosto manchado com um preparado cor violeta. Havíamos aplicado o medicamento pela manhã e nossos amigos acreditaram ser manchas de sangue em virtude de disparo de arma de fogo.


Os policiais saíram em alta velocidade com a sirene ligada, enquanto no apartamento quatro homens interrogavam a mim e a Encarnación.


Consegui olhar o papel que o chefe deles trazia nas mãos e li, datilografado, o nome de Denise e o endereço do apartamento, com a anotação “Aparelho da ALN”, tudo escrito em português.


Era evidente que procuravam por Denise a serviço da ditadura brasileira, a qual, com certeza, queria tê-la novamente em suas mãos.

Na verdade, notei que não tinham informações sobre mim, mas somente meu endereço e seu objetivo era realmente prender Denise.


De todas as outras prisões de brasileiros no Chile de que tivera notícia, a invasão de minha casa se diferenciava, pois aquelas eram realizadas pelas Forças Armadas e pelos carabineros, que praticavam inúmeras violências contra os presos.


Mas, em geral, não perguntavam por ninguém, torturavam e espancavam por mero sadismo; quase sempre ocorriam essas prisões em virtude de delações de vizinhos, pelo fato de serem os companheiros estrangeiros.


Nossa prisão, entretanto, tinha outra conotação.


Em primeiro lugar, porque era realizada pela polícia civil; também, por trazerem os policiais anotações em português; e, ainda, por terem procurado especificamente por uma pessoa.


Anos mais tarde, passaria a ser de conhecimento público a existência da famigerada “Operação Condor”, assim batizada por referência à enorme ave que habita a Cordilheira dos Andes.


Tal operação, gestada na década de 70, consistiu em um intercâmbio entre as ditaduras militares do Brasil, da Argentina, do Paraguai, do Uruguai, do Chile e da Bolívia, com o objetivo de que suas forças repressivas passassem a atuar em conjunto, prendendo, torturando e assassinando revolucionários desses países, independentemente do território em que se encontrassem.


Assim, alguns oficiais da Marinha Brasileira, agentes do CENIMAR, estiveram presentes no Estádio Nacional de Santiago e torturaram alguns presos políticos brasileiros, entre eles o companheiro Juca Alves.


De fato, foi descarada a intromissão da ditadura brasileira nos episódios do Chile.


Dias antes do golpe, já havíamos detectado a presença de alguns brasileiros com procedimento estranho naquele país que, quase certamente, seriam agentes da ditadura militar.


Não foi por acaso que o Brasil foi o primeiro país a reconhecer diplomaticamente a ditadura de Pinochet, ainda no dia 11 de setembro.


Minha prisão em Santiago ocorreu sem sombra de dúvidas pelo intercâmbio já existente entre as ditaduras latino-americanas, que mais tarde seria consolidado na “Operação Condor”.


Embora violentos, percebi que os policiais eram inexperientes e passei a dominar a situação, dizendo-lhes que não conhecia nenhuma Denise e que era professor de Música. Passaram a espancar a mim e a Encarnación, dizendo que em casa não havia livros de música.


Mostrando-lhes as passagens, disse-lhes ainda que teria saído do Chile no dia 12 de setembro, se não tivesse havido o golpe, e neguei ainda que fosse refugiado político.


Desafiei-os ainda a perguntar aos vizinhos se ali teria morado alguma pessoa com o nome Denise e, notando que não o fariam, passei a conduzir o interrogatório para onde me interessava.


Em dado momento, um policial encontrou em um dos guarda-roupas da casa uma tira amarela que pertencera a uma cueca “zorba” esquecida no apartamento quando viajei para a Europa e que Encarnación havia cortado.


Em virtude de estarem os militantes de esquerda da resistência vestindo fardas militares para confundirem os golpistas, o comando das Forças Armadas Chilenas determinou que todos os militares utilizassem como senha um bracelete de pano que era amarrado ao braço de cada um deles, cuja cor mudava todos os dias, para que não fossem utilizados também pelos membros da luta contra Pinochet.


Naquele dia, o bracelete utilizado pelos soldados golpistas era amarelo, quase idêntico à tira da cueca que o policial encontrara e, como os membros da polícia civil também usavam a senha, todos os policiais que estavam em casa também a portavam.


Encostando a tira da cueca junto ao bracelete que portava, concluiu o policial que nós estávamos engajados na resistência contra Pinochet, utilizando a senha do dia.


De imediato, percebi que a situação se complicava, até porque, no Chile, não se utilizavam na época cuecas desse tipo, mas somente cuecas estilo “samba-canção” - logicamente, os policiais duvidariam de minha explicação.


De qualquer modo, disse-lhes que aquele pedaço de pano nada mais era que parte de uma cueca e pensava em mostrar-lhes, como comprovação, outra peça de roupa do mesmo tipo, quando os policiais se irritaram e passaram a me espancar, chamando-me de cínico.


Embora tenso, pensei sobre o ridículo da situação em que me encontrava, pois, afinal, estava apanhando por causa de uma cueca “zorba” e, embora já duvidasse que eu fosse sair com vida daquele episódio, passava na minha cabeça que, caso vivesse, seria muito engraçado contar esse fato um dia a alguém.


Tal pensamento fez com que eu começasse a rir e, então, a coisa piorou.


Interpretando meu riso como cinismo, passaram os policiais a me baterem mais ainda, até que Encarnación, talvez para me livrar da pancadaria, gritou para os tiras: “Denise Crispim é minha filha. Eu sei onde ela está, não a entreguei para a polícia no Brasil, não vou entregar para vocês”.


De imediato, deixaram os policiais de me agredir e o chefe deles perguntou a Encarnación: “O que a senhora está falando?”

Encarnación, que falara em português, repetiu as mesmas palavras em espanhol, pausadamente, e encarou o policial com firmeza.


Na verdade, até então, não sabiam os tiras que Encarnación era mãe de Denise, mesmo porque seus documentos não continham o sobrenome Crispim, pois constava deles apenas Encarnación Lopes Peres.


A situação engrossou após ouvirem da corajosa revolucionária que, além de ser a mãe da pessoa a quem procuravam e de saber onde ela estava, não iria dizer-lhes.


Desafiados por uma senhora que acreditavam frágil, os policiais sentiram-se atingidos em seu orgulho.


Agarraram-nos com a violência à qual estão habituados, arrastaram-nos para fora do apartamento e fizeram com que descêssemos as escadas a socos e pontapés até o pátio do residencial, onde nos enfiaram na viatura, sob os olhares solidários de diversos vizinhos que viam a cena, sem que nada pudessem fazer.


Não sabíamos para onde nos levavam, mas, durante o trajeto, os quatro policiais nos faziam ameaças de toda a espécie, enquanto Encarnación e eu, no banco de trás, não dizíamos nenhuma palavra, espremidos entre dois tiras.


Passando pela Praça Itália, pude ver de longe o companheiro Paulo Sandroni parado na esquina, provavelmente esperando uma oportunidade para se refugiar na embaixada da Argentina, que ficava a poucos metros do local onde se encontrava.


O carro parou na Rua General Mackenna e percebi que novamente voltaria à sede policial, onde, dias antes, estivera para buscar meu passaporte, em meio ao tiroteio do golpe.


Descemos da viatura, Encarnación abraçou-me e murmurou ao meu ouvido: “Fique firme”.


Em resposta, olhei-a de modo a tranquilizá-la, pois, naquela hora, o único sentimento que me movia era o de firmeza. Sobretudo depois do exemplo que dera aquela mulher revolucionária, após ter agido como agiu diante das ameaças e da violência da polícia. Além do mais, eu tinha convicção de que preferia morrer a entregar Denise ou quem quer que fosse.


Nesse momento, ocorre uma cena pitoresca. Um homem conhecido no centro de Santiago por suas atitudes excêntricas, figura típica na cidade, seguramente com problemas mentais, caminha em nossa direção e começa a gritar “Esses livros são meus”, em referência aos livros apreendidos em casa que os policiais carregavam.


Algumas pessoas observavam a cena, o que incomodou bastante os tiras, que trataram de nos empurrar rispidamente para a delegacia, enquanto o homem continuava gritando: “Soltem o rapaz e a senhora, já disse que os livros são meus”!


Dentro das dependências policiais, separaram-nos e nos interrogaram em salas diferentes. Eu continuei afirmando durante todo o tempo, debaixo de pancadas, que não conhecia Denise.


Algum tempo depois, ouvi um disparo na sala do lado. Um policial entrou no local em que eu estava e disse a seus colegas que me interrogavam: “Matamos a velha, agora é a vez desse filho-da-puta”.


Disseram, então, que era a última chance que me davam para que falasse onde estava Denise, caso contrário, me matariam. Dizendo isso, o tira que acabara de entrar encostou o revólver em minha cabeça.


Em segundos, milhares de ideias passaram em minha mente. A mais forte delas era a preocupação com Tico, pois desconhecia o que ocorrera com ele.


Pensei também que era melhor que disparassem logo, pois acreditava que, de qualquer forma, iriam matar-me e considerava preferível que o fizessem mais rápido . Além do mais sabia que, morrendo, eu jamais sucumbiria a meus algozes.


Engatilhando o 38, o policial disparou e o ruído ensurdeceu meus tímpanos, devido à proximidade, mas nada aconteceu.


O disparo fora apenas efetuado com pólvora, sem balas, com o objetivo de abater-me psicologicamente. Vim a saber, mais tarde, que haviam feito o mesmo com Encarnación e dito também a ela que já me haviam matado.


Algum tempo depois, levaram-me para uma sala onde estava o exilado brasileiro Carlos Galeón Camacho, pessoa a quem eu conhecia e que possuía um restaurante em Santiago. Um policial me disse que poderia conversar com meu compatriota, se quisesse.


Falei pouco com Camacho, até porque sobre ele pesavam algumas suspeitas entre os exilados. Muito me estranhou que, em um regime que perseguia com fúria os estrangeiros, a polícia permitisse que ele circulasse com desenvoltura no prédio.


Também era muito estranho que os policiais me mandassem conversar com ele, fugindo esse comportamento a qualquer regra de uma prisão política em fase de torturas e interrogatório.


Então, revi Encarnacíon, também conduzida para lá, e Camacho, alguns minutos depois, saiu do local.


Fui reencontrar Camacho vinte e cinco anos depois, em 1998, quando, na condição de presidente da Câmara Municipal de Ribeirão Preto, estive em São Paulo na sede do Tribunal de Contas do Estado, local onde ele se encontrava com o prefeito de uma cidade do interior de São Paulo, a quem Camacho estava prestando assessoria.


Em voz bem alta chamei seu nome e ele disse que não me conhecia.


Relembrei-lhe do ocorrido e ele me disse que esteve na sede da polícia chilena no dia 17 de setembro de 1973 para fornecer comida naquela repartição, já que trabalhava no ramo de alimentação, versão essa sem nenhum fundamento, que certamente ele utilizou para negar sua ligação com os policiais de Pinochet.


Quando Brizola voltou ao Brasil, Camacho envolveu-se em outro lamentável fato, pois reuniu a imprensa em um hotel que gerenciava e que tinha por um dos sócios o filho do General Golbery. Lá proferiu contra Brizola sórdida acusação, bem a contento da ditadura militar.


Ficamos durante alguns minutos naquela sala, vigiados por um policial, quando ouvimos, na sala ao lado, o chefe de polícia determinar a seus subordinados que nos levassem ao Estádio Nacional.


O Estádio Nacional era o maior estádio de futebol do Chile — local em que o Brasil venceu a partida final da Copa do Mundo de 1962, tornando-se bicampeão mundial de futebol. Pinochet transformou a praça esportiva em um gigantesco campo de concentração, lugar em que inúmeras atrocidades foram cometidas contra os presos políticos e onde dezenas deles foram assassinados.


Faltavam 15 minutos para as 18 horas, hora do toque de recolher.


Pudemos ouvir que os policiais discutiam com seu chefe e negavam-se a cumprir a ordem de levar-nos para o estádio, em virtude do toque de recolher.


Argumentavam que temiam ser fuzilados pelos militares, já que não usavam farda e, portanto, não seriam facilmente identificados como policiais.


Afirmaram ainda que dois de seus colegas haviam sido mortos na véspera por engano, nessas circunstâncias.


Passaram então os policiais a falar em voz baixa, em seguida alguns deles vieram à sala em que estávamos, ordenando a mim e aos presos, ao todo oito pessoas, que os acompanhassem.


Passamos pela sala do chefe da polícia; por estar a porta aberta, pude ver sobre a mesa os livros que apreenderam em casa e, em cima deles, a subversiva tira da cueca amarela, que sorrateiramente coloquei no bolso e levei como troféu.


Para minha surpresa, que esperava sermos fuzilados, levaram-nos até a porta da rua e mandaram-nos embora, enquanto todos os policiais que lá se encontravam deixavam apressadamente a repartição, pois temiam estarem na rua durante o toque de recolher.

Abracei Encarnación e fomos andando devagar, enquanto eu esperava que nos atirassem pelas costas, o que não aconteceu.


Já passavam das 18 horas e havia pouquíssimas pessoas na rua. Os poucos carros que circulavam o faziam em alta velocidade, pois todos queriam ir para casa, já que se iniciara o toque de recolher.


Comecei então a pedir carona, pois tínhamos que sair do centro imediatamente, pois não acreditava que, se caíssemos nas mãos de alguma patrulha militar, teríamos a mesma sorte que tivemos até então.


Um dos motoristas parou, abriu a porta do carro e, assustado, perguntou-nos se éramos loucos por estarmos na rua naquela hora e, conosco já dentro do carro, indagou para onde íamos.


Falei onde morávamos e disse que havia ido ao centro para levar minha tia ao médico, e, em face do atraso da consulta, ficamos sem condução para voltar.


Percebendo que éramos estrangeiros, o homem assustou-se ainda mais, mas não era simpatizante de Pinochet e fingiu acreditar em nossa história.


Acabou desviando seu trajeto e deixou-nos na esquina das Avenidas Irarrázabal e Macul, a oito quadras de casa.


Já estava escuro quando descemos do carro e, depois dos agradecimentos ao homem que nos dera carona, fomos caminhando pela Avenida Macul. Passamos por volta de 18h40 pela calçada oposta à da unidade da Força Aérea, com duas sentinelas à porta, que por sorte não nos incomodaram.


Chegamos em casa e reencontramos Beti e Tico.


Ela não sabia onde estávamos e, na verdade, não esperava rever-nos, pelo menos, tão cedo.

Beti logo me tranquilizou em relação ao Tico, dizendo que ele estava bem. A doença nele diagnosticada fora um “falso crupe”, mas, felizmente, foi atendido em tempo e bastava continuar ministrando-lhe a medicação prescrita que ele não correria perigo de morte.


Houve, nessa noite, uma verdadeira romaria de vizinhos ao apartamento para perguntar como estávamos e manifestar-nos sua solidariedade.

Trecho do Livro Tempo de Resistência, de Leopoldo Paulino, 12ª. Edição.


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